13 junho 2009

O autocarro

É certo que todas estas experiências dignas do canal Panda que eu tenho tido têm tantas histórias, tantos momentos para vos contar, que nem sei por onde começar.

Sempre achei que realmente não era a minha coisa trabalhar com crianças. Com 8 sobrinhos em casa sei o que a casa gasta e os momentos de impaciência são muito mais significativos que qualquer momento de alegria e brincadeira. Sempre fui a tia pouco paciente e pronta para dar bolachadas sempre que preciso… com muito amor à mistura, com certeza!

Mas no fundo até acho que me estou a safar bem. Estou a gostar e apesar do nervosismo na preparação das actividades e no antes de tudo, quando olho para aqueles olhos brilhantes e ansiosos de fazer merda, vem-me logo a calma ao de cima e o tom sobe de timbre.

É engraçado que os miúdos que nos ficam na memória são sempre ou os muito bons, ou os muito maus… mais os maus…

Mas acho que realmente o meu futuro não passa por isto. Não me vejo como uma senhora professora.

A educação hoje em dia é revoltante, e que cara tenho eu para exigir silêncio, atenção e dedicação a crianças que só têm uma refeição por dia e que sofrem abusos e maus tratos diários? Não há realmente motivação para tentar educar quem não tem sequer direitos humanos.

Parece inacreditável quando pensamos que ainda hoje, nas escolas por onde passamos todos os dias, a grande maioria das crianças tem ali a única refeição diária e os únicos momentos onde podem gritar, praguejar e correr à vontade, porque quando chegam a casa são oprimidas e violentadas. Como lhes posso exigir o que quer que seja?

Se calhar esta realidade não vos abate directamente e são sempre noticias tristes que aparecem nos jornais. Mas a verdade é que os professores apanham com estas certezas todos os dias e são muitos os momentos de impotência e incerteza sobre o futuro de quem se tenta educar.

Agora que o meu contacto com o pessoal docente tem sido maior tenho-me deparado com histórias de terror que são demasiado tristes e cruéis para parecerem reais. Crianças que são levadas pela segurança social porque descobriram imagens de pornografia da criança com os pais, da criança com os irmãos… mas que raio de mundo é este? Mas que raio de realidade é esta?

O meu contacto é puramente ocasional. Não estou com eles diariamente, mas sim em dias esporádicos e festivos em que saem da rotina diária e fazem actividades diferentes. Mas até nestas pequenas oportunidades se conseguem presenciar momentos e crianças em que algo está errado.

Quando pedes atenção e exiges silêncio a determinado miúdo se não chamas o pai, e ele responde-te que quer é que o pai morra… o que é dizes a isto? O que é que respondes? É apenas uma frase que ouviu na televisão? É mesmo o que o miúdo sente? O que é fazes depois disto?

Encontras também professores de todos os tipos. Dos que já desistiram, dos que ainda tentam, dos que têm carinho, dos que têm desprezo.

Quando te vêm uns olhos brilhantes mostrar o desenho que fez e a professora lhe responde “como é que pode sair tão pouco duma cabeça?” o que é que dizes?.... como é que reages a um momento cruel de destruição de auto-estima e desprezo? Metes-te no trabalho de quem é docente todos os dias, tentas ensinar o trabalho a quem o faz ou discutes e argumentas contra quem tem 365 dias por ano de experiência e convivência com as crianças? É muitas vezes no pilar docente que a vida destas crianças falha. São muita vezes eles que, sabendo ou não, acabam por marcar muito negativamente a vida de alguém… para sempre.

Acho que a grande maioria dos professores não tem noção do peso que têm na vida destes miúdos. Cabe-lhes a eles não dar só educação, mas carinho, atenção e poderes suficientes onde eles se possam agarrar na vida futura que é sempre tão incerta. As palavras marcam de uma maneira que muita gente não alcança. Podem marcar como cordas onde nos agarramos e como pedras que nos ferem… É essencial perceber que toda e qualquer palavra fica naquelas cabecinhas a martelar e pode ter um efeito muito bom… ou muito mau.

Penso sobre qual será o meu papel no meio de todo este processo de educação. Afinal sou só mais um rosto de um só dia em muitos, muitos anos. Será que faço diferença? Será que posso mudar alguma coisa?

Será que posso por alguma auto-estima no coração dum miúdo quando elogio o trabalho dele para que se possa proteger de anos e anos de destruição?

Sabe-me muito bem quando os oiço a chamarem-me “Estrelinha”, quando me fazem perguntas, quando se interessam, quando me escutam, quando querem saber e quando, no final, percebo que aprenderam.

É fantástico quando os miúdos nos reconhecem na rua e se lembram do nosso nome.

Sabe tão bem quando no final, uma criança se vem despedir e diz que gostou muito. Aí sim são os momentos de recompensa que não têm preço.

Mas eles entram no autocarro outra vez… entram na rotina outra vez… entram na realidade outra vez… e eu já não faço parte dessa viajem. Já não entro no mesmo autocarro que eles.

Só espero que a paragem que fizeram comigo lhes fique guardada com muito carinho. Mesmo os pestes que me respondem que o nome de determinada árvore é “puf… puf… puf “ enquanto fazem sons com o sovaco, mesmo aqueles que dizem que um mamífero carnívoro é um sapo e que as lontras voam...

E rogo, por cada rosto brilhante que chega ao pé de mim, que a vida lhes sorria como eles me sorriem a mim quando lhes mostro que as corujas vomitam.

2 comentários:

  1. Estrelinha...

    Essa de "como é que pode sair tao pouco de uma cabeça" doeu ouvir...especialmente qd a frase me foi dirigida por uma Professora (va, chamemos-lhe professora pra não chamar algo pior) que tem a seu cargo meninos com necessidades educativas especiais e que hummmmmmm, digo eu, NÃO TÊM CULPA de aprender mais devagar que os outros! Eu acho que tens toda a razão quando dizes que os Professores não se apercebem da importância que têm na educação das crianças. Tive sorte de os meus professores serem bem melhores que essa Sra.

    Mas não julgarei se um dia esse puto lhe furar os 4 pneus do carro ou se pelo menos a apanhar numa esquina mal iluminada da Amareleja e lhe der um bom enxerto de porrada LOL (brincadeirinhaaaa a Sra nao merece isso, so merece que lhe abram a cabeça e lhe ponham la alguma INTELIGÊNCIA).

    Bem, despeço-me dizendo que estás de parabéns pelo trabalho que tens feito! Etás a sair-te maravilhosamente bem!

    Mil beijos, da

    Ecopista da Madrugada!GMDT*

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  2. Minha Estrela Mates, és a melhor educadora que esses putos algum dia tiveram o privilégio de poder ter.

    Ficava embevecida a olhar para a ti a lidar com os pequenos demónios... quando sorrias e quando dizias: mas vocês vão onde senhores??? Não percebem português????

    hehheeh.....
    beijo muito educativo desta criança que te adora.
    Maria

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