20 abril 2008

Noutra pele

Eu já não tenho alma. Já não tenho corpo. Sou um resto do mundo… não estou nos postais, não tenho reflexo, não tenho cheiro.
Tenho dentro de mim o nada. O nada que me restou de tudo o que perdi na vida, o nada que me supre a alma, que me preenche a mente, eu sou nada.
Quando tenho o peso de um corpo em cima do meu eu já não sinto a força das mãos que me apertam, já não sinto a boca suja que me percorre, já não sinto as lágrimas que deixaram de correr. Já não sinto o líquido quente a entrar dentro de mim, não sinto a pele a arranhar, não sinto a dor física, não sinto a dor moral.
É tão fácil perder tudo, é tão fácil deixar de viver, é tão fácil ser invisível neste mundo de cegos e de gente que não quer ver.
É cada vez mais fácil estar nas ruas, cada vez menor o frio, cada vez menos o medo. Não há nada a perder, já não há nada a ganhar.
Usaram e abusaram e puseram-me no lixo. Desde então que aí estou. Desde então que não me reciclam e apenas me consomem até que por fim perca a funcionalidade.
Os meus olhos que já não choram deixaram também de ver. A fome e o frio que antes não me deixavam dormir são agora companheiros de rua. As pernas que ainda andam deixaram de sentir. O sexo que já não tenho, ainda tem que servir. O coração já não sente e rogo para que deixe de bater.
As noites são rotinas passadas ao abismo, os dias são sofrimentos de quem não tem por que viver. Já nem vejo o rosto dos clientes, já não conto o dinheiro, já não me levanto quando me empurram. Deixei de ter por que o fazer, deixei de sentir tudo o que há para sentir. Eu sou o nada e ao mesmo tempo sou tudo o que esta cidade tem para esconder.


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