Tenho dentro de mim o nada. O nada que me restou de tudo o que perdi na vida, o nada que me supre a alma, que me preenche a mente, eu sou nada.
Quando tenho o peso de um corpo em cima do meu eu já não sinto a força das mãos que me apertam, já não sinto a boca suja que me percorre, já não sinto as lágrimas que deixaram de correr. Já não sinto o líquido quente a entrar dentro de mim, não sinto a pele a arranhar, não sinto a dor física, não sinto a dor moral.
É tão fácil perder tudo, é tão fácil deixar de viver, é tão fácil ser invisível neste mundo de cegos e de gente que não quer ver.
É cada vez mais fácil estar nas ruas, cada vez menor o frio, cada vez menos o medo. Não há nada a perder, já não há nada a ganhar.
Usaram e abusaram e puseram-me no lixo. Desde então que aí estou. Desde então que não me reciclam e apenas me consomem até que por fim perca a funcionalidade.
Os meus olhos que já não choram deixaram também de ver. A fome e o frio que antes não me deixavam dormir são agora companheiros de rua. As pernas que ainda andam deixaram de sentir. O sexo que já não tenho, ainda tem que servir. O coração já não sente e rogo para que deixe de bater.
As noites são rotinas passadas ao abismo, os dias são sofrimentos de quem não tem por que viver. Já nem vejo o rosto dos clientes, já não conto o dinheiro, já não me levanto quando me empurram. Deixei de ter por que o fazer, deixei de sentir tudo o que há para sentir. Eu sou o nada e ao mesmo tempo sou tudo o que esta cidade tem para esconder.
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